terça-feira, 23 de novembro de 2010

Indiscrição

Todo dia o vizinho ficava olhando as pessoas saindo para o trabalho, academia, escola, faculdade, feira, supermercado. E ele sabia mesmo para qual lugar cada uma delas estava indo. Aquele jeito de procurar algo na pasta, o livro na mão, carrinhos, sacolas, a maneira de amarrar o cadarço do tênis, todas essas pequenas cerimônias diárias de saída de casa eram observadas com calma, diariamente.

A única pessoa que escapava da certeza dessa observação era Antônia, a moradora da casa em frente ao pequeno edifício do observador. Ela tinha quase sempre um ar distante, vivia solitária e usava roupas bem cuidadas, embora surradas pelo excesso de lavagem, como se quisesse tirar de si algum pecado, se purgar de alguma marca que trazia do passado. Para piorar, os objetos que ela levava consigo em suas saídas pouco ou quase nada indicavam de valioso.

O observador tentava, criava conjecturas; mas nenhuma delas era suficiente para entender Antônia. Sua figura não era tão previsível como a dos demais suburbanos da vizinhança, e isso arrasava com o único orgulho cabível a alguém que passa o dia a analisar os outros: não saber quem é nem o que faz a vizinha da frente.

Para o vizinho, era difícil compreender a irregularidade dos horários em que Antônia transitava, sempre com sua bolsa de couro pendurada no braço direito e com uma pasta amarela segurada com firmeza. Mas numa manhã de domingo tudo mudou. O observador ouviu um som incomum vindo da rua e, ao chegar à calçada, viu a vizinha, que andava a passos largos e com uma fisionomia distinta daquela que lhe causava aflição. Antônia estava com tanta pressa que não percebeu que sua pasta amarela acabava de cair.

Ao abri-la, havia de tudo um pouco: papéis, fotos, documentos, uma revista de palavras cruzadas, uma caneta Bic, um recorte de jornal e um CD. Afinal, quem era essa pessoa? - pensava ele. Sua curiosidade chegava ao extremo. Era inegável a vontade de saber mais sobre a misteriosa vizinha.

Porém, já diziam os antigos, "a curiosidade mata". Não resistiu e resolveu colocar o CD em seu computador, mas antes de disso, teve um momento de dúvida. Sempre olhara as pessoas, mas nunca rompia a barreira do panóptico. Olhar sem ser visto e sem interferir na vida de ninguém era uma tentação e um refúgio para sua indiscrição.

No CD havia vários vídeos em que a dona da pasta era facilmente identificável. Em quase todos, Antônia xingava, mexia em objetos em uma sala, quebrava pratos e xingava mais. O vizinho reparou que vários trechos eram repetidos. Antônia nunca se importaria com a indiscrição dele, mesmo que não tivesse permissão para vê-la. Ela vivia da exposição para desconhecidos. Era atriz.

Um comentário:

  1. Muito bom! So os atores suportam a mesmice do cotidiano com dignidade, sem se vender; pois vestem papéis capazes de os arrebatar para mundos muito melhores que o nosso.

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